Pelo Negro da Terra e pelo Branco do Muro
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Há uma beleza que nos é dada: beleza do mar, da luz, dos montes,
dos animais, dos movimentos e das pessoas.
Mas há também uma outra beleza que o homem tem o dever de criar: ao
lado do negro da terra é o homem que constrói o muro branco onde a
luz e o céu se desenham.
A beleza não é um luxo para estetas, não é um ornamento da vida, um
enfeite inútil, um capricho. A beleza é uma necessidade, um princípio
de educação e de alegria.
Diz S. Tomás de Aquino que a beleza é o esplendor da verdade. Pela
qualidade e grau de beleza da obra que construímos se saberá se sim
ou não vivemos com verdade e dignidade. A obra do homem é sempre um
espelho onde a consciência se reconhece.
Quando olhamos à nossa roda as aldeias, vilas e cidades de Portugal
temos de constatar que quase tudo quanto se construiu nas últimas
décadas é feio. Feio e - ai de nós! - para durar. Feias as obras
públicas e feias as obras particulares. As excepções à regra de
fealdade são raras.
Costuma dizer-se que a nossa pobreza é a origem dos nossos males. Mas
o que caracteriza grande parte da nossa arquitectura desta época é o
novo-riquismo. Um novo-riquismo exibicionista - quase sempre sem
funcionalidade e sempre sem cultura e sem sensibilidade.
Isto é especialmente triste quando comparamos o presente com o
passado: de facto olhando os antigos solares de pedra e cal vemos que
a nossa arquitectura soube criar nobreza sem riqueza. Daí a pureza e
a dignidade de tantas casas antigas.
Agora não se trata evidentemente de copiar o passado: a arquitectura
é uma arte e a arte é criação e não imitação. Continuar não é imitar
e imitar é sempre ofender e trair aquilo que é imitado. Mas é
necessário que exista aquela consciência do passado e do presente a
que chamamos cultura. Somos um país antigo. Dizem-nos que somos um
país pobre. É estranho que destas coordenadas resulte uma
arquitectura de novos ricos.
A construção da cidade moderna traz problemas difíceis de resolver:
problemas de espaço e de circulação. Mas entre nós estes problemas só
existem em Lisboa e no Porto. No resto do país os problemas são quase
unicamente problemas de humanidade, de bom senso, e de bom gosto ou
seja problemas de moral, de inteligência e de sensibilidade e
cultura.
A regra a seguir é esta: uma casa para todos e beleza para todos. E a
beleza não é cara. É geralmente menos cara do que a fealdade que
quase sempre se chama luxo, monumentalismo, pretensão. A beleza é
simplicidade, verdade, proporção. Coisas que dependem muito mais da
cultura e da dignidade do que do dinheiro.
Penso neste momento especialmente na terra do Algarve, com suas
praias, suas grutas, seus promontórios, seus muros brancos, sua luz
claríssima. É preciso não destruir estas coisas. É preciso que aquilo
que vai ser construído não destrua aquilo que existe.
A arte é sempre a expressão duma relação do homem com o mundo que o
rodeia. A arquitectura é especificamente a expressão duma relação
justa com a paisagem e com o mundo social. Fora destas coordenadas só
há má arquitectura.
Afirma-se que é necessário desenvolver turisticamente o Algarve. Para
isso será preciso construir. Mas é necessário que aqueles que vão
construir amem o espaço, a luz e o próximo.
Existem todas as condições para que se possa criar no Algarve uma boa
arquitectura: ali temos uma paisagem e uma luz que
pedem "arquitectura", ali encontramos um uso belo e tradicional do
barro e da cal; ali temos uma arquitectura local lisa e pura como uma
arquitectura moderna, uma arquitectura popular cujos temas o
arquitecto poderá desenvolver duma forma mais técnica e mais culta:
ali temos um clima que facilita a vida e propõe soluções de extrema
simplicidade.
Ali poderemos ter os materiais, as inovações, a técnica e a cultura
do nosso tempo. Ali poderão trabalhar os arquitectos competentes que
existem no nosso país.
Mas é urgente evitar os seguintes perigos:
- A incompetência
- O saloísmo
- As especulações com os terrenos
- Os maus arquitectos
- O falso tradicionalismo
- A mania do luxo e da pompa
- As obras de fachada
Acima de tudo é preciso evitar a falta de amor. De todas as artes a
arquitectura é simultaneamente a mais abstracta e a mais ligada à
vida. Aqueles que não amam nem o espaço, nem a sombra, nem a luz, nem
o cimento, nem a pedra, nem a cal, nem o próximo, não poderão criar
boa arquitectura.
(Publicado em Janeiro de 1963, no nº 21 da "Távola Redonda")